Humberto Maturana (77) é cientista e biólogo. Revolucionou o mundo da ciência com a teoria biológica do conhecimento, que afirma, entre muitas coisas, que não se pode fazer referência a uma realidade independente do homem.
Humberto Maturana é grisalho, inquieto, de andar harmonioso e corpo miúdo. Seu olhar é algo inquieto. Tem um jeito de gênio louco, de sábio grego, de menino grande. Mas ele é assim, sem querer ser. Muito natural, muito acolhedor, assim é este biólogo gênio, que se destaca e é conhecido em todo o mundo pelas suas teorias.
O Senhor é um homem de sucesso. Honestamente, gosta da fama?
Honestamente, sim e não. Até certo ponto é bom, porque tem certas coisas que são facilitadas. Por exemplo, viajar. Eu já viajei muito sem pagar nada do meu bolso. Ao mesmo tempo eu não acredito na fama. E é porque eu sei o que sei.
Conheço o valor do que faço. Sei que o que faço, o faço bem feito. Mas nem todo o mundo entende o que eu faço. A fama é como a moda, é um entusiasmo passageiro que as pessoas tem por alguma coisa num momento determinado, em função da sua própria fantasia. A fama é transitória.
É algo que a gente presenteia desde o entusiasmo e que desvanece com o entusiasmo que lhe deu origem. Eu acredito que, o que eu fiz perdurará mais que a fama que terei.
O fato de saber mais sobre o homem e o mundo lhe facilita a vida diária?
É muito mais fácil. Mas não tanto pelos conhecimentos específicos que eu adquiri, mas porque me dei conta de que não posso pretender ser o dono da verdade.
Os distintos conhecimentos se validam de diferentes maneiras. Eu já mostrei que todas as ideologias, teorias e religiões partem de premissas que são aceitas a priori, por aquilo que as defende desde suas preferências, não porque sejam necessárias. Se você sabe isto não pode se sentir dono da verdade, se liberta das exigências e descobre que não tem nada para exigir do outro nem de você mesmo. Tampouco entra no caos, porque a vida não é caótica e se descobre que a harmonia do viver se faz com a convivência na aceitação do outro.
Somos responsáveis pelo que somos?
No espaço da reflexão somos sempre responsáveis das nossas ações, porque sempre temos a possibilidade de verificar o que fazemos. Por tanto, como somos, é sempre o presente da nossa história. Somos como somos. Quando reflexionamos e nos damos conta das conseqüências das nossas ações, somos responsáveis por elas. Porém, as coisas não passam sem que tenham alguma coisa a ver com a gente. Se você me pergunta se os 16 anos do governo militar no Chile tiveram alguma coisa a ver comigo, se eu participei ou não, eu falo que sim.
Certamente os fatos que aconteceram no Chile são também de minha responsabilidade. Eu paguei impostos e respeitei o toque para ficar, sou indiretamente participante de tudo. Todos os chilenos no Chile contribuíram para que o Chile tenha sido assim durante esses 16 anos, mas, contribuiremos para que seja outra coisa, se quisermos que seja outra coisa.
Você acredita em Deus?
Não.
Acredita que o homem é um ser transcendente?
Não, não tem alma como uma entidade independente. Mas existe a alma humana – fala e põe cara de mistério. Eu vou explicar. Penso que os seres vivos são sistemas que têm suas características como resultado de sua organização e estrutura, de como são feitos e, para que existam não se necessita de mais nada.
Mas ao mesmo tempo os seres vivos tem duas dimensões de existência, Uma é a sua fisiologia, sua anatomia, sua estrutura. A Outra suas relações com os outros, sua existência com a totalidade. O que nos constitui como seres humanos é nosso modo particular de ser neste domínio de relações, onde se configura nosso ser, no conversar, no entrelaçamento da linguagem e no emocional. O que vivemos trazemos na mão e configuramos ao conversar, e é no conversar onde somos humanos. Como entes biológicos existimos na biologia, onde só se dá o viver. A angústia e o sofrimento humano pertencem ao espaço das relações.
Tudo que é espiritual, o místico, os valores, a fama, a filosofia, a história, pertencem ao âmbito das relações do humano, que é o nosso viver nas conversações. No conversar constituímos nossa realidade com o outro. Não é uma coisa abstrata. O conversar é um modo particular de viver juntos em coordenações do fazer e do emocionar. Por isso, conversar é o construir realidades. Conforme praticarmos a linguagem, muda a nossa fisiologia. Por isso, podemos ferir-nos ao acariciar com as palavras. Neste espaço de relações podemos viver na exigência ou na harmonia com os outros. Ou se vive no bem estar estético de uma convivência harmônica, ou no sofrimento da exigência negativa contínua. Eu acredito que Jesus era um grande biólogo.
Ele fazia referência a esta harmonia fundamental de viver sem exigências, por exemplo, quando ao falar através das metáforas dizia: “Olhai as aves do campo, nem cultivam, nem trabalham, nem se esforçam, e se alimentam melhor que os humanos” e, sem angústias sua existência é harmônica na vida e na morte. E quando falava das flores. Ou quando dizia que para entrar no reino de Deus tínhamos que ser como as crianças e viver sem a exigência da aparência na inocência do presente e estar na harmonia com as circunstâncias. Dizer tudo isso é compreender a biologia do ser espiritual.
Como explicar em termos próximos, cotidianos, a teoria do conhecimento?
Podemos invocar a teoria biológica do conhecimento com algo cotidiano. Todos os seres humanos temos dois tipos de experiências fundamentais. A mentira e o erro. Todos sabemos quando mentimos, mas não quando nos equivocamos. Porque o erro é sempre depois. A mesma coisa acontece com as ilusões, como quando a gente vai caminhando na rua e cumprimenta alguém que acredita conhecer, e depois percebe que não era a pessoa conhecida.
Aí está o ponto, percebemos o erro depois, atendendo a outras dimensões distintas daquela a qual reconhecemos a pessoa e vivemos a experiência, boa ou má, de encontrar-nos com ela. Essas experiências constituem o fundamento de dar-nos conta que não podemos fazer referência a uma realidade independente. Eu não posso distinguir a experiência entre ilusão e percepção, porque essa distinção vem depois. Se pudermos nos colocamos de acordo. E todos sabemos cotidianamente que no mundo em que vivemos é um mundo de acordos e ações. E que cada vez que o outro não sabe alguma coisa, podemos ensinar, gerando um acordo de ações.
O problema não está na convivência, nos acordos, nem em notar que não podemos fazer referência a uma realidade independente. O problema está em acreditar que podemos fazer essa referência: no apego a ela, através de crer que podemos dominar os outros reclamando para si o privilégio de saber como são as coisas entre si. E isto e que é o fundamento da teoria que explica a biologia do conhecer, é acessível para qualquer pessoa.
Por que sentimos angústia?
A angústia está relacionada com as expectativas e se suprimem eliminando as exigências. Não é fácil, mas todo o discurso de Jesus é um convite para acabar com a angustia através do desapego. Quando fala que temos que ser como as crianças para entrar no reino de Deus, faz referência ao desapego. O que é o reino de Deus? Um mundo sem angústias, porque é sem expectativas, sem aparências, sem pretender ser o que não se é. E está na harmonia de viver no presente e não com a atenção colocada no resultado do fazer, mesmo que se trate de fazer, com o propósito de obter um resultado.
E o Senhor é um homem sem angústia?
Eu acredito que sim. Salvo quando tenho problemas econômicos. Fora disso, não tenho angústias, diz rindo.
“A angústia está relacionada com as expectativas e se suprime eliminando as exigências”. O Sr. sabe como é Humberto Maturana Romecin?
Olha. Não sei como sou. Dou-me conta de como estou sendo. Tenho certos valores... Nem sequer sei se tenho certos valores. Os tinha antes, quando era criança, tinha valores. A honestidade, a honra.
Já não tenho estas duas coisas como valores. Não me preocupam. Já não tenho que tratar de ser honesto. Sou honesto, nada mais. Não gosto de mentir porque violo um acordo fundamental com o outro. Entretanto, às vezes minto. E não justifico minha mentira. A escolho. Por exemplo, uma vez ou outra vou ver um amigo ao meio dia e me pergunta se já almocei. Digo que sim, mesmo que não tenha comido nada. É mentira, mas não posso chegar e falar: não se preocupe, não importa que fique sem comer. Porque nesse momento cria-se um espaço do qual eu não quero pensar. Quando era criança chegava em qualquer lugar e me davam comida.
Mas agora não. Você já não pode chegar de visita a um lugar sem ser anunciado e aceitar comida, porque está comendo a comida do dia dos teus amigos.
O que é a felicidade?
Suponho que é não ter nem aspirações nem desejos. Viver a vida na harmonia das suas circunstâncias. Isso não quer dizer viver flutuando na desordem nem no caos. A gente faz o que faz porque quer fazê-lo, se não der resultado, se faz outra coisa. Parece uma vida desapaixonada.
Desapaixonada no sofrimento, a felicidade não é estar em festas. Por exemplo, há quinze dias, a Fundação Andes nos chamou para dizer que um certo projeto que tínhamos feito havia sido aprovado. Hoje recebemos uma carta que dizia que não estava aprovado. O que propusemos no projeto é importante para nós. Tem a ver com os computadores da décima geração. Nós os estamos desenhando e não quero que sejam desenhados pelos japoneses.
Sou patriota. Este é um aparelho que eventualmente pode aprender a viver em consenso com um ser vivo. Pode chegar a interagir na linguagem. É importante, operacional e conceitualmente. Eu poderia sofrer pela negativa da fundação. Mais não. Minha atitude foi: se é assim, ótimo, e se não for, ótimo também. As pessoas acreditam que a felicidade está em que todas as coisas que fazem saiam bem feitas. Isso não é assim. A maioria das coisas que a gente faz saem mais ou menos. Algumas saem bem e outras mal.
A infelicidade é o apego que as coisas têm de sair sempre bem. Como a maioria das coisas que a gente faz não resultam muito bem, quando resultam bem a gente se entusiasma, fica cego na celebração e não percebe os erros que começam a cometer. Assim, andamos pela vida de salto em salto, da angústia a felicidade e vice-versa. Eu pelo menos não ando assim, eu sou alegre justamente por isso.
Mas imagino que às vezes o Senhor sofre...
Sim, sofro às vezes. Mas não tanto... (disse com a sua voz segura, serena e sábia).
Material sugerido pela colega Karine Lugo, retirado do site da palestrante Leila Navarro.
Entrevista com Humberto Maturana
Reviewed by Jonas Schell
on
outubro 14, 2010
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